No programa O Assunto é Cinema, que foi ao ar nesta quinta (10) na FM Educativa 104,7, o jornalista e produtor Clayton Sales analisou “Mickey 17”, ainda em cartaz nos cinemas.

O filme retrata Mickey Barnes, um homem cheio de imensos problemas financeiros. Ele se inscreve como voluntário em uma expedição para colonizar um planeta. Sua função é executar as tarefas com mais risco de morte. E ele morre, não uma, mas várias vezes. Isso porque quando morre, suas memórias são armazenadas e reimplantadas em um novo corpo. Até que a 17ª versão do Mickey protagoniza uma reviravolta que selará o destino desse sistema.
Dirigido e escrito pelo sul-coreano Bong Joo-ho, o roteiro é baseado no romance de ficção científica “Mickey 7” de Edward Ashton. Desde o início, ele deixa claro que a sátira seria a tônica. E o alvo era o mundo do trabalho, especulado em um futuro distópico onde os corpos são descartáveis e substituíveis por novas “peças”. Como distopias criam fábulas futuristas a partir de contextos explícitos ou subliminares do presente, é nítido que o filme alude ao corpo humano como instrumento para a mais-valia do capital por meio da exploração do trabalho.

Mickey é um típico homem do universo liberal, conectado a uma busca individual pela solução de seus insanáveis problemas cotidianos. Quando ele aceita o famigerado serviço, é por um desespero que exala derrota e conformismo. Então, sua saga atravessa vários clones descartáveis. Inclusive, “Descartável” é sua classificação na companhia. A única coisa que interessa à empresa é a mente condicionada a aceitar a condição insignificante e, por isso, ela é preservada como um HD de computador pronto para ser instalado em outra CPU.
É interessante a forma como os corpos de Mickey são dispensados. Assim que “morrem”, eles são atirados em uma fogueira, talvez uma referência religiosa ao inferno, o destino de quem não serve mais ao trabalho. Max Weber ficaria intrigado se não haveria pontos de contato com sua teoria da ética protestante e, com certeza, o mais primitivo espírito do capitalismo.
Mas ocorre uma espécie de revolta dos oprimidos, carregada de simbolismos que remetem vagamente à “Metrópolis”, a partir da qual o sistema dominante é sucumbido e o símbolo da exploração ininterrupta do corpo como vetor da exploração do trabalho é destruído: a máquina de clonagem. Um reconhecimento da imortalidade fraudulenta da consciência e da finitude humana como norte da vida digna.

O filme também retoma a velha e sempre interessante ideia da colonização extraterrestre, presente desde clássicos como “Viagem à Lua”. Em tempos de bilionários desocupados gastando para colonizar Marte, é de se perguntar quem serão os operários a botar os corpos em risco em um eventual êxito dessa missão excêntrica. O filme fustiga a ideia de colonização real e histórica.
Todo esse conjunto de alegorias é muito bem desenvolvido por um roteiro perspicaz, apesar de algumas poucas superfluidades, e uma direção astuta e coesa de Bong Joon-ho. Ele consegue nos guiar por essa saga malfadada com olhos atentos e mente em ação na caça por pontos de conexão com as incertezas atuais a respeito do trabalho.
As atuações são coletivamente eficazes, com destaque para Robert Pattinson com seu Mickey elaborado na sombra da desilusão melancólica até mesmo quando as coisas tomam um novo rumo. Vale mencionar também Toni Collette, que interpreta uma ardilosa preposta da nave e Mark Ruffalo, a perfeita caricatura do capitalista excêntrico, imbecil, cruel e mau caráter. Referência a um certo magnata das big tech atualmente alojado em alto cargo no governo americano? Aspectos técnicos como fotografia, edição e trilha sonora funcionam com a leveza ácida da comédia e a dinâmica frenética da ação e aventura.

“Mickey 17” é um ótimo filme, que utiliza a sátira com momentos maravilhosos de pastiche para construir uma crítica mordaz à relação histórica entre a exploração do trabalho e a descartabilidade do homem como ferramenta de produção de lucro e poder para poucos. Por meio de um escárnio futurista, deixa claro para que serve nosso corpo no mundo do trabalho sob a égide capitalista. Na forma de um pesadelo distópico, elabora uma metáfora que transforma essa relação em sua versão ainda mais brutal.
Nota 9
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